Ainda não, contrapássaro

2009
Galeria Virgílio

Lé sem lé, cré sem cré (tomara que o mundo acabe)

O trabalho de Ana Paula Oliveira não junta. Isso é o principal. Ele desconjunta, distrai, absorve, rasga, cai. Mas não junta. O galo de Alvorada (2004) não nada do sabão. Os pássaros de Os pássaros (2007) não sabem nada da borracha. Uma parte não sabe nada da outra. Há uma distopia pairando, não um contraste. O diferente junta, o disparate junta, o que é oposto junta. Mas o trabalho de Ana Paula não junta, e por isso que surpreende tanto.

Essa é sua intuição principal, como mendigos fazendo discursos uns ao lado dos outros, indiferentes à mútua companhia; como atletas correndo provas separadas numa mesma raia. Algo arbitrário ronda, portanto, estas peças, necessariamente. é o arbítrio que as fez assim – arbítrio mesmo, distraído, estético. E se são tão mal acabadas, se quase desabam, se mal se sustentam em seus apoios, é para que essa indiferença entre as partes possa manter-se viva, sem fixação. Parecem, muitas vezes, ter sofrido uma pancada, mas a violência que vem delas, que aparece nelas, perceptível ao nosso olhar, é apenas secundária, embora estruturante. A verdadeira violência, primária, veio do ato mesmo de colocá-las ali, como uma cópula sem penetração, rondando, tentando. Por isso os passarinhos de Dos pássaros pareciam tão aflitos, voando por toda parte, como uma nuvem bíblica de gafanhotos e não canarinhos de gaiola. A quem pertenciam? A si mesmos? às esculturas da parede? A revoada emotia a pergunta sem descanso. No final, pareciam livres da obrigação de simbolizar, descarregados de si próprios, afastados enfim da doce identidade que têm os passarinhos de gaiola. Algo terrível nascera neles.

Em um dos trabalhos desta exposição, Ainda não, o peso de dormentes excessivamente dimensionados (como também em elefante, em 2009) apoia reservatórios de plástico com água e peixes vivos. A vida que vai dentro dos sacos é absurda, rondando, quase morrendo, comprimida demais, numa estrutura de madeira e sacos plásticos que tem pouco a ver com ela. As duas são tão alheias que parecem afinal estabilizar-se, esvaziando-se mutuamente, numa espécie de destroço involuntário que ninguém sabe bem como foi parar ali, daquele jeito. Os dormentes apenas apoiados, os sacos quase estourando sob o próprio peso, a falta de oxigenação dos peixes, a precariedade final que ronda tudo, formam a encarnação, a matéria da intuição poética de Ana Paula Oliveira, pondo em conexão aberta, transitiva, os elementos chamados ao palco. Eles devem manter-se exatamente assim, quase insustentáveis, para que não sirvam uns aos outros. Por isso os dormentes são tão grandes – sustentam mais o próprio peso do que aquilo que carregam. Dessa forma, a intuição poética de todo o trabalho – aproximar sem interagir; chorar sem carpir; abraçar sem fundir; tocar sem sentir; penetrar sem procriar, numa fuga sem trégua ao terceiro termo, ao resultado da operação contrastante –, pode manter-se intocada.

Acho que o problema de Ana Paula de agora em diante será desenvolver esta intuição mergulhando na linguagem, nas possibilidades da linguagem, mas sem perder a carga disjuntiva. Trata-se afinal, de uma pequeno paradoxo – fazer arte é sempre, de alguma forma, produzir linguagem (se deixamos de lado, uma vezinha só, essa panaceia contemporânea em que se transformou o binômio arte-vida), mas, neste caso, sem juntar bem sujeito e predicado. No entanto, não há artista verdadeiro que não mergulhe no espelho do que fez, que não aprofunde sua potência diante do que elegeu como signo. Essa potência é, já de saída, de alguma forma articuladora, com sua rede de possíveis traduzidos, conectados pela própria obra. Para desenvolver-se, o trabalho de Ana Paula terá de reconhecer-se cada vez em seu próprio estranhamento, mas sem enfraquecê-lo, sem deixar que a própria sintaxe plástica dê coesão ao que devia permanecer desconexo. Acredito que o segundo trabalho desta exposição, Contrapássaro, geométrico e literalmente equilibrado, é um exemplo de sucesso nessa nova etapa – há ali uma articulação entre partes que tem nitidez inédita, mas que não falseia o contorno estilístico da obra.

Por isso, quando olharmos estes trabalhos (por mais que o saco esteja bem costurado, por mais que a chapa esteja equilibrada, por mais que o peixe solte bolhas de ar pela boca), será preciso prestar atenção ao sussurro que vem deles: tomara que o saco rasgue, tomara que a chapa caia; tomara que o peixe morra. E mais baixo ainda, numa voz bem fininha: tomara que o mundo acabe.

Nuno Ramos, outubro 2009